Poucas regiões bíblicas guardam uma transição tão rica e simbólica quanto a que liga Gileade, no oriente do Jordão, ao território do Reino do Norte e, mais tarde, a Galileia, cenário do ministério de Jesus.
Ao seguir essa linha geográfica e histórica, é possível perceber como o norte de Israel se tornou palco de expansão, ruptura e restauração na história do povo de Deus.
Gileade: a terra além do Jordão
A história começa em Gileade, uma faixa montanhosa fértil situada a leste do rio Jordão, entre os vales do Arnom e do Jaboque. Foi uma das primeiras terras conquistadas por Israel ainda nos dias de Moisés, após as vitórias sobre Seom e Ogue (Deuteronômio 3).
Ali se estabeleceram as tribos de Rúben, Gade e metade de Manassés, conhecidas como as “duas tribos e meia”. A região era famosa por suas pastagens abundantes, suas colinas suaves e por um produto que se tornaria lendário: o bálsamo de Gileade, um óleo aromático usado para fins medicinais e simbólicos, mencionado pelos profetas como imagem de cura e restauração espiritual (Jeremias 8:22).
Mas Gileade, embora abençoada, ficava fora da Canaã ocidental, além do Jordão — o limite natural da Terra Prometida. Era uma posse legítima, porém geograficamente separada, e essa distância se tornaria significativa nos séculos seguintes.
O Reino do Norte: a expansão e a divisão
Com a morte de Salomão, o antigo Israel unificado se dividiu. As dez tribos do norte formaram o Reino de Israel, com capital em Samaria, enquanto Judá permaneceu no sul com Jerusalém.
Nesse novo reino, Gileade permaneceu como sua porção oriental, enquanto a Galileia e as regiões de Efraim e Samaria compunham o núcleo ocidental. Em outras palavras, Gileade e Galileia passaram a fazer parte de um mesmo corpo político e cultural — o norte de Israel.
Gileade, no entanto, ocupava uma posição vulnerável. Por estar na fronteira com os reinos de Damasco e Amon, era constantemente atacada. Quando o poder assírio se levantou no século VIII a.C., Gileade foi uma das primeiras regiões a cair. O livro de Reis registra que o rei Tiglate-Pileser III tomou “Gileade e a Galileia” (2 Reis 15:29), deportando seus habitantes para a Assíria.
Esse versículo é revelador: Gileade e Galileia aparecem lado a lado — duas faces do mesmo norte israelita que sucumbia. A terra fértil e a antiga região de pastos foram devastadas, e o povo levado ao exílio.
Galileia: a herança e a mistura
Depois da queda do Reino do Norte, a região da Galileia foi repovoada por povos estrangeiros trazidos pelos assírios (2 Reis 17:24). Com o tempo, formou-se ali uma população mista, de origem israelita e gentia. Essa mistura deu origem à expressão profética: “Galileia dos gentios” (Isaías 9:1), uma região vista com certo desprezo pelos judeus do sul, por sua distância e pela falta de pureza étnica e religiosa.
Mas a Galileia mantinha uma beleza natural e uma vitalidade cultural únicas. Suas colinas cercavam o Mar da Galileia, e suas pequenas cidades — como Nazaré, Cafarnaum e Betsaida — tornaram-se conhecidas séculos depois, quando a história tomaria um novo rumo.
Foi ali, no coração desse território que um dia pertencera ao Reino do Norte, que Jesus cresceu e iniciou seu ministério. O evangelho de Mateus cita justamente a profecia de Isaías, dizendo: A antiga terra desprezada, o mesmo solo que fora palco de divisão e exílio, tornou-se o primeiro lugar a receber a luz do Messias.
A conexão entre as três regiões
Ao observar o mapa e a história, percebe-se uma continuidade natural:
Gileade ficava ao leste do Jordão, Galileia ao norte e oeste, e o Reino do Norte unia as duas sob o mesmo domínio. Todas faziam parte de uma mesma faixa geográfica — o setor norte de Israel —, mas também compartilhavam um destino comum: prosperidade inicial, afastamento do centro espiritual (Jerusalém) e, mais tarde, restauração pela graça divina.
O rio Jordão, que simbolizava a entrada na promessa nos tempos de Josué, tornou-se, com o tempo, uma linha de separação. A distância física entre Gileade e o centro de adoração em Jerusalém antecipou a distância espiritual que mais tarde marcaria o Reino do Norte. Quando a Galileia herdou essa geografia, herdou também sua condição periférica — mas foi justamente essa “periferia” que Deus escolheu para acender novamente a luz da aliança.
Da separação à restauração
A jornada de Gileade até Galileia é, em essência, uma história de margens e reencontros. Gileade representou o primeiro passo para fora da Terra Prometida; o Reino do Norte, a consolidação da separação; e a Galileia, a surpreendente restauração — o lugar onde Deus reaproximou o céu e a terra.
O mesmo norte que antes se afastara do templo e da unidade nacional tornou-se o berço da mensagem do Reino de Deus.
O mesmo território que experimentara o exílio viu nascer o Redentor.
Reflexão:
Assim, geografia e teologia se unem: Gileade, o símbolo da divisão, e Galileia, o símbolo da reconciliação, estão ligadas por uma linha que percorre toda a Bíblia — a linha da graça que transforma a margem em centro e o exílio em esperança.

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